28 de março de 2024

Gésner Braga*

espelhoQuase 70 travestis e transexuais solicitaram o uso de nome social durante o ENEM 2014. A notícia circulou há poucos dias e despertou em mim uma profunda gratificação por ver pessoas – algumas do meu convívio – empenhadas em mudar o curso do seu destino. O número pode parecer irrisório se comparado à população de travestis e transexuais no país e aos quase 10 milhões de inscritos no ENEM neste ano, mas ilustra uma mudança de atitude que já está em curso há algum tempo, sendo imprescindível tê-la provocado, vê-la acontecer e encará-la como um fato inexorável.

Mas por que a notícia me toca tão fundo? O movimento LGBT foi uma das experiências mais transformadoras da minha vida. Mesmo me considerando uma pessoa liberal, foi no ativismo social que percebi estar imerso num oceano de preconceitos. Se mudei, devo parte do mérito dessa transformação às minhas amigas travestis e transexuais. Antes, quando eu ainda estava acomodado no conforto da minha vidinha medíocre, eu as enxergava com olhos de estranhamento, como algo apartado da minha realidade. Foi então que conheci a obstinada luta delas por visibilidade, voz, direitos e respeito. Era impossível passar incólume por esta vivência.

De todo o segmento LGBT, são elas as mais expostas, pois, via de regra, não podem ocultar a natureza transgressora da atitude de assumir uma identidade oposta ao esperado pelos padrões convencionais e limitados da nossa cultura. São, portanto, mais vulneráveis e marginalizadas, condenadas a um grau de invisibilidade capaz de fazer ruir qualquer sonho de realização pessoal, por mais singelo que seja, quando não pagam com a própria vida pela ousadia de terem decidido ser coerentes consigo mesmas.

Porém, as adversidades não as abalam. Muito pelo contrário, aguçam o desejo de serem ouvidas e, perseverantes, elas colhem suas conquistas ainda que com muita paciência. As bandeiras são diversas e a mais importante é o uso do nome social e, em grau definitivo, a alteração do registro civil, pois é uma mudança diretamente relacionada ao reconhecimento da identidade de gênero que se traduz em respeito, pilar fundamental da luta.

Neste campo, a vitória mais emblemática até o momento foi a ampla adoção do nome social na carteira do SUS, sendo a iniciativa também estendida a órgãos públicos e algumas instituições de ensino. Os desdobramentos não param e agora a Comissão Especial da Diversidade Sexual da OAB pleiteia que advogados e estagiários que se identificam como pessoas trans possam usar o nome social no registro da Ordem, na identidade profissional e em outros meios.

Pensando estrategicamente, ativistas reivindicaram e conseguiram que o Projeto de Lei n. 5.002/2013, também conhecido como Lei João Nery, que dispõe sobre o direito à identidade de gênero, fosse tema da Parada LGBT de São Paulo neste ano, de modo a dar necessária visibilidade ao assunto. Na Bahia, esta bandeira foi empunhada pela Defensoria Pública que decidiu promover ação coletiva para alteração de registro civil de travestis e transexuais e, mais uma vez, a mobilização delas foi determinante para este desfecho. Por tudo isso, é comovente vê-las agir e acompanhar o resultado das suas ações.

E por falar em João Nery, não posso deixar de citar o invejável grau de empoderamento dos homens trans. Certo dia, em conversa com minha amiga Guida França, da Área Técnica de Saúde LGBT da Secretaria de Saúde da Bahia, eu a ouvi, entusiasmada, falar sobre sua convivência com eles e seu contentamento ao perceber que todos, sem exceção entre os que ela conhece, são engajados e espantosamente capacitados. E nós bem sabemos o quanto este investimento pessoal é essencial para a coletividade.

As demandas das pessoas trans são muitas e sabemos que o caminho a trilhar é longo e árduo. Porém, talvez movidas por um instinto de sobrevivência, corre em suas veias um sangue em ebulição, uma disposição à luta que me inspira. E nesta determinação por vencer, contrariando todos os prognósticos ante o contexto hostil e opressor, conquistam espaços outrora inimagináveis. Ocupam cargos e funções de comando no serviço público, são bacharéis, mestras e doutoras, dirigem escolas e empresas, têm seu próprio negócio, estão nas passarelas e nos palcos, nas telinhas e telonas, são reconhecidas estrelas de primeira grandeza. Assim, reescrevem a história, apesar de alguns narizes torcidos contra suas vitórias.

Enfim, 70 pedidos de uso de nome social no ENEM podem parecer pouco, mas certamente são o passo inicial de mais uma jornada exitosa rumo à ruptura de barreiras e paradigmas e a caminho da realização plena que elas e eles merecem alcançar, consagração esta que terei o prazer e orgulho de assistir.

* Gésner Braga é gay, ativista LGBT, jornalista e mantém o site Clipping LGBT

3 thoughts on “O espelho trans

  1. O que há de mais triste é não ver esta população nas salas de aula das escolas públicas ou particulares. Quando aparece 1 ou 2, vira novidade e desaparecem rapidamente.
    Além do nome, precisamos de uma política para que avancem na vida escolar e cheguem à vida acadêmica.

  2. Só te parabenizar mais uma vez por esse texto magnifico, e agradecer por retratar a nossa população de uma maneira verdadeira, sutil e sensível, muito orgulhosa de vc Gésner Braga.

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