29 de março de 2024

José Carlos Fernandes

Publicado na Gazeta do Povo, em 7 de fevereiro de 2014

A historiadora paranaense Laysa Carolina Machado, 42 anos, rasgou muito verbo nas últimas semanas. Latim não lhe faltou. Começou com o alarido em torno da arte-educadora Júlia Dutra, a primeira transexual a chegar à direção de uma escola no Rio de Janeiro. Depois veio o Oscar dado a Jared Leto no papel do transexual soropositivo em Clube de compras Dallas. Por fim, a cena roubada pelo biquíni selvagem da travesti Patrícia Araújo, no desfile da Mocidade Independente de Padre Miguel.

Não se furtou de nenhum desses debates, para surpresa dos que não entendem por que ela não se cala. Laysa guerreou todas as guerras, bem podia se atirar à rede, ir ao salão, fazer hora no supermercado. Está casada. É concursada. Tem uma carreira paralela, como atriz. Os novos documentos estão em dia. E fez história.

Basta dizer que, antes de Júlia Dutra sonhar ser mandachuva, ela já estava lá, fazendo parte da equipe de diretores de uma escola – o Colégio Estadual Chico Mendes, em São José dos Pinhais. É pioneira no gênero, no cargo desde 2009, com o acréscimo de que foi eleita pela comunidade, uma proeza.

Mas não lhe peçam que se contente em ser uma mulher como tantas – ela há de lançar chispas saídas de seus olhos rasgados de rainha cafuza. Mandaria palavrão. Com sorte do interlocutor, respira fundo e responde com sua belíssima voz grave que é uma mulher trans. Que seu nome – Laysa – não deixa dúvidas. Que não vai se trair. Um dia, sai no jornal O Globo. Noutro, vai ao programa do Danilo Gentili, recebe documentaristas catarinenses, entrega-se a um projeto premiado pelo Instituto Vladimir Herzog. Se alguém na redondeza não sabia que Laysa é trans, fica sabendo. E seja o que Deus quiser.

Bem-me-quer, mal-me-quer, difícil não se perguntar como chegou viva até aqui. Nem eu nem você suportaríamos. Acompanhe o resumo. Laysa nasceu de pai negro e mãe índia, pobrezinhos da Colônia Vitória, em Entre Rios, rica comunidade alemã próxima a Guarapuava, no Centro-Sul do Paraná. Morava na ocupação Vila dos Brasileiros, cujo PIB não se parece ao da Baviera. Tirava comida do lixo. Amargava a tristeza de ser guri e saber-se guria, com o acréscimo de ter de aturar um coro de sádicos à sua orelha, gritando sabe-se bem o quê.

Seu redentor – um padre estrangeiro em missão. Deu-lhe um jardim para cuidar, uns trocados. Livros e revistas. Estudos. Etiqueta à mesa. Música erudita. Viagem à Europa. Tinha-a como um filho, mas custou aceitar que o curumim do Mundus Novus se via como Laysa. Choraram juntos o que não podia ser mudado. Um dia lhe disse: “Ganhei uma filha”, e foram felizes para quase sempre – ele de volta a seu país, onde morreu. Ela nascendo de novo, aos poucos, sem coro de passarinhos a lhe saudar, paciência.

Ouvindo-a, fica a impressão de que foi ao procurar frutas boas no lixão, quando criança, que entendeu como funcionava o manual de sobrevivência na selva. É na base do ônus e do bônus – quem obedece fica vivo, pode estudar, pode ter emprego. Assim o fez, estrategista. Cumpriu todas as falas do scriptque lhe reservaram. Namorou. Cursou faculdade. Aprendeu inglês. Disfarçou-se. Garantiu-se – para, no último dia de 1999, desacatar. Comprou o primeiro vestido e inaugurou seu novo milênio. Foi a um baile. Foi o bug. Uma semana depois, estava demitida.

Difícil não ver o filme em que Laysa menino é ajudada por um padre, em que a Laysa menina leciona História, Geografia e Inglês em escolas da Colônia Marcelino e no Colégio Aníbal Khury, no Uberaba. O avental comprido escondia a obra dos hormônios. O corte no pomo, “tireoide”, dizia. Sabe-se que os alunos batiam os pés em protesto a cada partida. Ônus e bônus – tinha de ser a melhor, do contrário, guilhotina.

Em 2007, ao chegar ao Colégio Chico Mendes, seu posto por direito, impôs-se com o nome com o qual se batizou. Não lhe deram refresco. “Tem quem me ache um ET.” Discordo. Laysa fala bem pra caramba – deve fazer bonito em sala. Tem inteligência viva e aquele dom de colocar a pergunta exata, talento de poucos. Em certas horas, é como se não tivesse nervos. Faz o tipo cerebral. Em outras, lembra Elza Soares – “cantando para não enlouquecer”. Seu lema, aliás, vale uma rodada bem gelada: “Quem, como eu, não tinha mais nada a perder sempre tem tudo a ganhar”. E aquele abraço pro Jared Leto.

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