por João Marinho
Hoje, meu esporte favorito não foi a natação, mas ler os comentários homofóbicos em todas as notícias que deram destaque ao primeiro beijo gay em uma novela global na internet. Nervosíssimos, os homofóbicos chamaram a Globo de “esgoto” para baixo… Além do conhecido discurso de “destruição da família”, da “moral” e da “defesa de crianças” – que nem deviam ver a novela dada sua classificação indicativa. Né?
Existem algumas coisas nessa história do beijo que merecem ser lembradas. Postei, aqui na minha timeline, que não acreditava que ele sairia. Mantive essa posição até o final, sem arrependimento.
Isso porque não era simples pessimismo meu. A Globo tinha um histórico nada agradável de acenar com possibilidades de beijos, inflar a audiência e deixar os apoiadores vendo moscas ao fim do capítulo.
Além disso, sempre houve receio por parte da Globo de perder seu público conservador – que tem importância em um momento em que a tevê aberta perde audiência e enfrenta a concorrência de outros meios de comunicação e da tevê a cabo.
Essa perda de audiência da tevê aberta, se considerarmos a migração para a paga, a rigor, não significa propriamente perda para a Globo, que, via Globosat, detém a maioria dos canais pagos, como já postei aqui, e é acionista da NET, principal e mais lucrativa operadora no Brasil. No entanto, a Rede Globo continua sendo seu carro-chefe e a principal geradora de receitas via comerciais e patrocinadores. Portanto, é algo para se levar em conta.
Ademais, ao que tudo indica, a Globo decidiu liberar o beijo apenas na reta final. Há pouco mais de duas semanas, um colega de profissão meu correspondeu-se com Walcyr Carrasco sobre o beijo, e o próprio autor lhe dissera que não tivesse muitas esperanças.
Tudo aponta que a cena do beijo foi liberada após enquetes, pesquisas de opinião e análise da receptividade do público indicarem que era uma zona de baixo risco. A Globo já sabia que “Amor à Vida” vinha registrando mais audiência que sua antecessora, “Salve Jorge”. Já sabia que o público se apaixonara por Félix, a “bicha má”, e que tinha recebido bem sua regeneração. Já sabia que os telespectadores estavam mais ligados no final amoroso de Félix que no de Paloma. Primeiro, com o mecânico que traçava tudo que “caía na rede”. Depois, com o Niko bonzinho, que, paulatinamente, caiu nas graças do público e virou a mocinha carismática da trama. Faltava saber se o público aceitaria o beijo. Como a resposta foi sim, liberou.
Por isso, não é bem verdade que a Globo deu um “tapa na cara da sociedade”. Antes, andou ao lado dela. Se fosse o oposto, seríamos frustrados, como em “América”.
Agora, verdade seja dita, isso não tira o brilho das cenas finais, tanto pelo beijo em si quanto pelo espetacular fim em que César aceita o filho gay e, pelo amor, supera sua homofobia. O recado foi dado na trama: o amor existe em diferentes cores e em diferentes tipos de família (vide a família de Niko, com seus dois filhos), e não é a homossexualidade que “destrói” família alguma: é a homofobia.
Os LGBTs, os mais fundamentalistas parecem se esquecer, não nasceram de chocadeiras e nem brotaram da terra. Nascemos em famílias, muitas das quais nos fazem experimentar a dor do preconceito muito antes que as pessoas de fora, exatamente como ocorreu com César e Félix. É isso, e não a homossexualidade, bissexualidade, travestilidade ou transexualidade, etc. em si, que destrói os lares. Quando o membro gay é aceito e recebido no seio familiar, a convivência, a harmonia e o amor se estabelecem, e ele se torna um membro tão importante e tão ativo na família quanto qualquer outro. Com isso, LGBTs e família só têm a ganhar.
O fato de que a maioria do público percebeu essas mensagens – que são reais! – e, sem titubear, apoiou o final feliz de Félix, Niko e do pai César, torceu por um beijo e até fez campanha por isso, embora indique que a Globo não andou em terreno movediço, é, de sua parte, uma vitória.
Os religiosos fundamentalistas e os conservadores aguerridos, homofóbicos, com seu discurso “pró-família” reduzido (porque despreza todos os outros tipos de família, inclusive as que contam com membros LGBTs) e seus argumentos falsamente construídos sobre a ideia de “moral” e “bons costumes”, sempre gostaram de pensar que mobilizavam a “maioria” da sociedade contra uma ideia, igualmente falsa, de “ditadura gay”.
Em todas as pesquisas ou enquetes que pude consultar, a maioria, na ordem de 60% em média, na verdade, apoiou os personagens e o beijo, e a audiência tampouco caiu por causa disso. Uma minoria de 40% – jogando alto, porque nem todos que eram contra o beijo eram necessariamente contra os personagens e a abordagem sobre homossexualidade e homofobia construída por Carrasco – é ainda grande coisa, mas mostra que, na verdade, os preconceituosos não têm todo esse poder de mobilização.
Nem o boicote puxado por evangélicos (fonte: GNotícias) funcionou. Uma estranha campanha. Afinal, foi só um beijo. Estranho é que assassinatos, intrigas, tapas, brigas, traições, que ocorreram na mesma novela, sejam aceitos e ninguém pense em boicote por causa disso.
Isso, para esses grupos que sustentam a discriminação, é tão ou mais dolorido quanto o beijo em si. Sempre falaram em nome de uma “maioria” que se mobilizaria contra a “minoria” interessada em estabelecer uma “ditadura gay”. Ao que parece, a verdadeira minoria são eles, que querem, isso sim, estabelecer uma ditadura religiosa e moral – e os demais não querem.
Já argumentei que a luta contra a homofobia é também uma luta pelos corações. Quando uma sociedade toma o caminho do respeito e da tolerância majoritárias, isso torna mais simples e mais sólida a consecução de direitos civis e fundamentais. Quando o preconceito e a discriminação são acuados, fica mais simples instituir a diversidade como um valor, que realmente é.
Por isso, ainda que não mudem, a rigor, o outro lado da luta, contra as agressões, contra os assassinatos, contra o sequestro da política pelos fundamentalistas, são importantes essas ações culturais – e, por isso, torna-se tão gratificante vê-los espernear. Pelo menos, por um dia.
Admirei muito mais a capacidade de regeneração e perdão de Félix do que o dito “arrependimento” e confessado “amor” de César. O pai desnaturado quis reconciliar-se com Aline que tanto mal lhe fez e, ainda titubeante, declara, laconicamente, que ama o filho. Admiro o fato de gays, após tanta rejeição, humilhação, insensibilidade das respectivas famílias ainda estarem dispostos a implorar afeto e perdoar aqueles que tanto os ofenderam.´E essas famílias preconceituosas precisam da Globo para ver seu filho (ou filha) homossexual como gente, como pessoas dignas do seu amor… Eu quero mais. Eu quero respeito, amor, aaceitação das famílias, desde sempre, para seus filhos. Chegaremos lá! Eu ouso ter esperança.