25 de abril de 2024

Por Joel Zeferino*

Publicado no site Novos Diálogos, em 6 de julho de 2014

religiaoComeço com uma afirmação que para mim é vergonhosa como cristão, mas não posso me furtar a fazê-la a bem da verdade: a contribuição das igrejas para o diálogo inter-religioso é negativa. Ou dito de outro modo: o diálogo inter-religioso se dá, na maior parte do tempo, apesar das igrejas.

Digo isso pela constatação de que a quase totalidade de casos de intolerância religiosa no Brasil é promovida por igrejas cristãs e seus membros — no passado por católicos, atualmente por evangélicos —, quase sempre direcionado aos religiosos de matriz africana. Os casos mais famosos como de Mãe Gilda, que redundou num longo mas vitorioso processo judicial, infelizmente se somam a centenas de outros no cotidiano: seja na invasão de terreiros e destruição de objetos sagrados; na violência cometida por agentes do Estado e também por cidadãos comuns, seja entre vizinhos ou no ambiente de trabalho. Se abrirmos nossos ouvidos, perceberemos que o discurso do ódio que pode ser encontrado em qualquer esquina, sendo berrado a plenos pulmões nos púlpitos de igrejas cristãs, pentecostais ou não.

Adeptos de outras religiões como Wiccas, e mesmo ateus, também não têm muito o que celebrar: as relações com um Estado que se diz laico, mas segue extremamente sensível à pressão religiosa de uma maioria cristã com tendências fundamentalistas, é extremamente desfavorável. O absurdo do passado recente de uma Comissão da Câmara dos Deputados que trata de Direitos Humanos dirigida por um cristão histriônico e intolerante chama a atenção justamente por demonstrar algo que é a regra: o Estado Brasileiro ainda está tão permeado por um ranço cristão hegemônico, que mudam os governos mas cada um deles treme diante de um espirro dessas lideranças.

Um parêntese aqui: é preciso notar que a força dessas lideranças se dá a partir da manutenção daquilo que poderíamos chamar de “ecumenismo de direita” — mas não vamos chamar, pois usar uma palavra bela como “ecumenismo” para descrever esse movimento soa como algo desonroso. Melhor dizer então “coalizão de direita”. Coalizão esta formada anteriormente por católicos conservadores, que atuam desde o Brasil Império na defesa dos interessas da igreja romana. Muito mais recentemente, com o crescimento do movimento evangélico, essa coalizão passou a receber gradativamente membros das mais diversas igrejas. Ao ponto de hoje se imaginar tranquilamente sentados em torno de uma mesa lideranças católicas conservadoras e pastores da IURD — isso para falar de duas igrejas que num passado recente travaram uma guerra midiática fortíssima. Aparentemente o tema dessa “coalizão religiosa de direita” é a questão dos direitos sexuais e reprodutivos. Mas penso que isso seja apenas o “carro-chefe”, o que dá mais visibilidade ao grupo, sobretudo porque faz eco a uma sociedade como a nossa, que ainda é profunda e hipocritamente conservadora.

Na verdade, todos os temas ligados à moral religiosa, bem como à defesa de interesses particulares dessas religiões em situação de hegemonia (aqui quero nominar claramente: setores das igrejas cristãs católicas e evangélicas, em um grau mais forte, e setores e lideranças do espiritismo, com discreta participação,) são alvo de preocupação e atuação articulada por parte dessa coalizão. A incidência pública desse discurso conservador não é, portanto, algo meramente aleatório. Há uma forte intencionalidade e articulação implícita e explícita.

É óbvio que a atuação dessa coalizão age em prejuízo da promoção da Diversidade Religiosa. Basta olhar para a dificuldade de se aplicar a Lei 10.639 que incluiu no currículo oficial da rede de ensino a obrigatoriedade da temática “História e Cultura Afro-Brasileira”, e que já completou onze anos. Pois mesmo hoje, as objeções e dificuldades à implementação da lei é algo espantoso! Numa turma de mestrado da UNEB com o tema “Educação e Religião”, pude testemunhar que o que mais se ouvia era o relato de gestores e educadores das diversas dificuldades na aplicação da lei: falta de material adequado; recusa por parte de professores e alunos cristãos em tratar do tema; a morosidade dos governos em dar resposta a todas essas demandas. Ora, seria muita ingenuidade imaginar que essas “dificuldades” são apenas fruto da morosidade do aparelho estatal. Há a intolerância religiosa em ação sim!

Enfim… Diante desse quadro tão difícil, é possível falar de alguma contribuição positiva por parte das igrejas para o diálogo inter-religioso? Penso que sim. Só é preciso colocar essas contribuições dentro desse quadro maior, senão corremos o risco de pintar um mundo que existe para um grupo, no qual me incluo particularmente, mas que não condiz com a realidade na qual vive a quase totalidade das pessoas.

Para falar dessas contribuições das igrejas faço um rápido desvio para as reformas protestantes dos séculos dezesseis e dezessete. Faço isso apenas para constatar aquilo que alguns sociólogos chamam da “invenção” do pluralismo religioso. Lembrando, é claro, que esse é um discurso de uma história contada a partir do Ocidente, fruto de uma lógica fundada desde o primeiro dos Impérios Ocidentais, e que é mantida até nossos dias, em que pese a força e o poder significativo do Oriente, exemplificado na Revolução Islâmica — e suas consequências.

As reformas protestantes geraram algo imprevisto e interessante: grupos cristãos tendo a possibilidade de afirmar verdades diferentes. Cada novo grupo cristão que surgia passou a ter a sua versão particular do Cristo, o que seria “o caminho, a verdade e a vida” — o que significa dizer que, na prática, cada um deles passou a ter seu próprio caminho, sua própria verdade, e sua própria vida, para ser mais contundente, seu próprio Cristo…

É claro que esse “pluralismo” não foi nem fácil, nem belo: guerras terríveis foram travadas; uma inquisição foi inventada; fugas em massa aconteceram. Passado tudo isso, o que sobrou foi uma igreja dividida em inúmeros fragmentos, num quebra-cabeça para o qual parece que existem peças infinitas — e em constante fragmentação. Como consequência desse processo de pluralização, conforme a sociologia de Peter Berger, foram gerados os processos de secularização e privatização. Basicamente, a noção de “Estados Laicos”, e da escolha privada de ter ou não religião, foram frutos também imprevistos de reformas que se pretendiam tão somente tornar o Cristianismo “mais puro”, “mais popular”, e claro, como única religião verdadeira.

Voltando pra nossa realidade: as igrejas hoje trazem as marcas desse processo, e de forma bastante simplista, é como se nós todos trouxéssemos em nós o “vírus” da diversidade. Claro que, como já dissemos, para insistir na metáfora médica, não faltam tentativas de “vacinação em massa”. Mas não obstante, a possibilidade de viver a diversidade aparece sempre e repetidamente na nossa frente.

Por outro lado, como fruto de conscientização, mobilização, posicionamento e muita coragem, foi se constituindo ao longo do tempo um legítimo Movimento Ecumênico, que existe e subsiste, e que cada vez mais se dá conta de que ser ecumênico é muito mais do que apenas tentar reparar os abismos que separam os muitos grupos cristãos. É manter ao mesmo tempo um olhar respeitoso e acolhedor para com outras expressões religiosas.

Olhando para a realidade da qual emergiu, isto é, de conflitos e guerras entre grupos cristãos, é surpreendente que a Conferência Missionária Mundial, realizada em Edimburgo em 1910, que gerou como fruto o Conselho Mundial de Igrejas, tenha completado mais de cem anos. É surpreendente a criação e manutenção de instituições tanto na Europa quanto na América Latina. Que apesar de não terem a mesma visibilidade midiática de figuras e instituições ligadas à “coalizão religiosa de direita”, o Conselho Nacional de Igrejas Cristãs (CONIC) mantenha seu trabalho de articulação em favor dos Direitos Humanos, incluído o do respeito à Diversidade Religiosa. Que instituições ecumênicas como CESE, Koinonia, dentre muitas outras, sigam empunhando a bandeira da promoção da Diversidade Religiosa e da luta contra a intolerância.

Pensando também em algumas pessoas-símbolo, gente de igreja, que seguem na luta por um ecumenismo e que não fecha seus olhos para a Diversidade Religiosa aqui no Brasil, é também surpreendente que dentro de espaços como a Igreja Metodista, que recentemente tomou o rumo da “coalizão religiosa de direita”, tenhamos um Anivaldo Padilha mantendo sua trajetória com a mesma dignidade de sempre. Que Eliana Rolemberg siga com seu trabalho de décadas na vanguarda da ampliação dos horizontes dos Direitos Humanos e da Diversidade Religiosa. Que a partir de uma herança batista extremamente conservadora, surja um Pr. Djalma Torres, que abriu caminhos no meio de pedras, e segue apontando para caminhos mais largos, onde não apenas se tolere, mas se conviva e se celebre a Diversidade Religiosa. O que falar da força do feminismo que acolhe as múltiplas experiências religiosas de uma Nancy Cardoso Pereira, ou da inteligência e sofisticação do pensamento de André Musskopf e sua Teologia Queer, que amplia horizontes para fora e para dentro das igrejas e religiosidades a partir dos humanos corpos e seus desejos de viver sem opressões.

Olhando mais para perto de minha realidade aqui na Bahia — que não é esse retrato pintado de convivência harmônica; pelo contrário, justamente por ser terra onde a presença de pessoas de religião de matriz africana é algo que não se pode esconder, é terra também de conflitos, que vão da discriminação diária, à destruição de espaços sagrados, de mortes em disputa por terra. É, portanto, mais uma vez inesperado que se mantenham espaços de acolhida e fraternidade, comunidades onde se vive o respeito à diversidade religiosa e mesmo de tímidos ensaios de celebração dessa diversidade. Penso aqui numa Irmandade de Rosário dos Pretos no Pelourinho; na Paróquia Anglicana do Bom Pastor na Cidade Baixa; na Igreja Antioquia e sua proposta de dupla pertença ali pertinho do Dique do Tororó e das belas imagens inspiradas na religiosidade afro; na Comunidade de Jesus, em Feira de Santana; na Igreja Batista Nazareth e sua trajetória de “resistência, luta e fé”.

Longe do pessimismo das sombras pesadas dessa “coalizão de direita” e sua tentativa de abafar as vozes de pessoas e grupos à margem, creio que seguem e seguirão sendo criados a cada dia grupos informais de vivência de uma fé que convive e dialoga com a diversidade. Gente muito jovem, que se articula via redes sociais, mas que tem uma incidência pública muito real e concreta. É possível ver isso claramente na força de articulação nacional e regional da Rede Ecumênica de Juventude (REJU), e sua Campanha contra a intolerância. Numa moçada boa da “Espiritualidade Libertária” em São Paulo, dxs meninxs Cristoversiv@s, com base no Rio de Janeiro. De tantos outros grupos que não conheço, que são intencionalmente invisibilizados, mas que estão por aí, nas periferias —geográficas e do sistema — fazendo trabalho de base de muito valor, ainda que sem publicidade alguma.

Contribuições genuínas, sinceras, de vidas e comunidades que trazem consigo a marca da memória de um Jesus de Nazaré que gostava de rua, e desconfiava de templos. Contribuições das igrejas, a partir das igrejas, ou como disse desde o início, contribuições para a Diversidade Religiosa, apesar das igrejas.

* Joel Zeferino é bacharel em Teologia e licenciado em Filosofia, é pastor na Igreja Batista Nazareth, em Salvador (BA).

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