23 de abril de 2024

Defensora Pública Bethânia Ferreira,

Por Dra. Bethânia Ferreira, Defensora Pública
Publicado pelo site Dois Terços, em 14 de junho de 2015

Defensora Pública Bethânia Ferreira,
Defensora Pública Bethânia Ferreira

A polêmica que causou a representação de uma transexual crucificada na 19ª Parada Gay de São Paulo demonstra somente mais uma estação na via crucis na vida de travestis, transexuais e transgêneros. É uma existência de luta contínua, para ser simplesmente o que se é. Hoje, vamos tratar de uma dessas estações no martírio de uma pessoa transexual: o nome.

Certo é que precisamos avançar na questão da adequação do nome do registro civil à identidade de gênero do indivíduo, mas isso, até pela extensão e complexidade do tema, é discussão para outra coluna. Trataremos, pois, especificamente do uso do nome social nas instituições. Para iniciarmos esse debate, precisamos usar como conceitos balizadores “identidade de gênero” e “nome social”.

As normas internacionais de direitos humanos consagram o direito à identidade de gênero como direito fundamental do indivíduo. Os princípios de Yogyakarta – estes se referem à aplicação da legislação internacional de direitos humanos em relação à orientação sexual e identidade de gênero – enunciam que identidade de gênero é uma experiência interna, individual e profundamente sentida que cada pessoa tem em relação ao gênero, podendo corresponder, ou não, ao sexo atribuído no nascimento.

A garantia ao direito à identidade de gênero se confunde com os direitos da personalidade do indivíduo, o qual se autocompreende e se autodefine como de determinado gênero, podendo ser, ou não, o sexo biológico de nascimento.

Ocorre que quando uma pessoa não se identifica como de determinado gênero equivalente a seu sexo biológico, seu nome civil, dado pelos pais, não será aquele pelo qual a pessoa deseja ser chamada. O nome social, então, é o nome pelo qual a pessoa deseja ser chamada e é reconhecida no seu meio social, em conformidade com sua identidade de gênero.

O nome é individualizador e identificador do indivíduo. É a primeira expressão de identificação das pessoas em suas relações sociais – por vezes, somos identificados em documentos e registros somente pelo nome.

A Administração Pública deve se pautar pela efetivação da garantia ao direito ao reconhecimento do gênero autodeterminado pela pessoa, como forma de consecução dos direitos fundamentais. Para tanto, o poder público nas esferas administrativa, legislativa e judiciária, na sua condição de balizador da criação e interpretação das normas que possuem relação com identidade de gênero, deve considerar o direito de reconhecimento do indivíduo em sua autonomia da vontade e da expressão.

O poder legislativo brasileiro ainda não foi capaz de enfrentar, de forma incisiva, a questão da adequação do nome civil à identidade de gênero. Com isso, diversos projetos de lei tramitam no Congresso sem definição. Não obstante a dificuldade de avançarmos na produção legislativa do Congresso Nacional sobre o tema, percebe-se um avanço das esferas administrativas em reconhecer o uso do nome social como forma de minorar as violações de transexuais, travestis e transgêneros.

Por conta disso é que diversos ministérios, estados, municípios, universidades, instituições públicas, conselhos profissionais, conselhos de educação e conselhos de direitos vêm editando leis, decretos, portarias e resoluções de diversos poderes executivos, cujos documentos reconhecem que o nome do registro civil não se coaduna com o indivíduo e, por conseguinte, incluem a disciplina sobre o nome social no seu âmbito administrativo.

A verdade é que, juridicamente, atos normativos acerca do nome social não resolvem a questão, tampouco permitem a aplicação em todas as esferas das relações sociais. Entretanto, não podemos olvidar que se trata de um processo em evolução, com tendência a ser vitorioso e a culminar, enfim, com a edição de uma legislação eficaz de adequação do nome civil à identidade de gênero.

A existência de normas internas não somente permite o tratamento adequado ao indivíduo naquele espaço administrativo, mas também promove a discussão e a capacitação dos servidores para lidarem com a questão da identidade de gênero, ultrapassando os limites das concepções pessoais e superando preconceitos. Seguramente, esse é mais um saldo positivo que emerge com a aplicabilidade do referido projeto de lei.

Devemos destacar a importância das portarias de uso do nome social nos ambientes escolares, procurando garantir respeito aos indivíduos, com a finalidade precípua de contribuir para a manutenção das pessoas trans nas escolas e universidades. O Conselho Estadual de Educação da Bahia possui normativa sobre o tema que deve ser seguida por todo sistema estadual de educação – escolas e universidades, a exemplo da Universidade Federal da Bahia.

Importante ainda destacar a iniciativa de estados como o Rio Grande do Sul e o Pará, que editaram leis implementando a carteira de identidade de nome social, na qual consta o nome social, número de identidade e CPF das pessoas que solicitarem.

O Sistema Único de Saúde (SUS) também determinou que seja utilizado o nome social da pessoa no cartão do benefício, assim como no momento do atendimento, por meio da Portaria  n. 1.820 do Ministério da Saúde.

Como exemplo do sistema de Justiça, trazemos a Portaria n. 392-2014, da Defensoria Pública do Estado da Bahia, que assegura a possibilidade de uso do nome social aos travestis e transexuais usuários dos serviços prestados por Defensores Públicos, estagiários e servidores da Defensoria Pública do Estado da Bahia nos registros, sistemas e documentos da instituição.

Nessa perspectiva, a edição desses atos normativos deve ser vista pela sociedade como uma forma de avançar e de pressionar Judiciário e Legislativo a se posicionarem de forma estreita com os direitos humanos. Entretanto, o reconhecimento está apenas começando; a transfobia nos espaços institucionais ainda permanece. Então, caso o direito de uso do nome social não seja respeitado em uma instituição que tenha essa previsão, devemos todos denunciar na ouvidoria da Instituição ou órgão respectivo, assim como à Defensoria Pública e ao Ministério Público. E vamos avançar.

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