23 de abril de 2024
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Decalcomania, obra de René Magritte, de 1966

Relatos da essencial – porém custosa e por vezes inviável – experiência da alteridade

Gésner Braga*

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Decalcomania, obra de René Magritte, de 1966

Tenho por costume afirmar que o ativismo social promoveu uma ruptura de paradigmas e uma revisão de valores sem precedentes em minha vida. A diversidade é o princípio basilar do movimento LGBT ao qual pertenço e, por estar imerso nesta profusão de ideias, pessoas, histórias, visões e contextos, fui obrigado a reeducar meu olhar para ao menos tentar entender o olhar do outro, o seu lugar no mundo e como a interação com o diferente interfere na minha vida, num esforço de compreensão da alteridade como fenômeno que me dá instrumentos para a boa leitura desse universo tão plural.

Eu me avalio e sou avaliado como uma pessoa racional, o que vem a ser requisito para o distanciamento crítico que aqui reclamo. Mas também sou de carne, osso e sobretudo sangue no olho. Tenho cá meus arroubos e paixões que podem me cegar, motivo pelo qual a experiência da alteridade é complexa e me obriga a me policiar em certos momentos, forçar minha natureza e nem sempre consigo o meu intento. Em muitos casos, eu não tenho nem razão para tal empenho. Mesmo assim tenho colhido alguns frutos.

Esse tipo de desafio pessoal tem-me feito colecionar episódios curiosos e a vontade de partilhá-los. Apresentarei alguns mais recentes, ocorridos nos últimos três meses, ordenados de acordo com meu grau de empatia com a visão alheia ou sua ausência total.

A defesa da diversidade e a percepção da alteridade em níveis generosos

Começo meus relatos com um caso ocorrido na III Conferência Estadual LGBT realizada em Salvador, em março passado. Durante a eleição de delegados para a Conferência Nacional, em Brasília, uma pessoa não binária (que não se identifica com o gênero masculino ou feminino) denunciou a invisibilidade extrema da qual padece e da imposição em proclamar um gênero para si de modo a garantir alguma das vagas destinadas a homens e mulheres, cisgêneros ou transexuais.

Logo em seguida, alguém pediu a palavra para defender que pessoas não binárias estão numa fase de transição entre dois gêneros opostos e, ao invés de postularem um tratamento específico, precisam definir o que querem ser, se homem ou mulher. Movido pela necessidade premente de um olhar diverso, dirigi-me à pessoa que acabara de falar e contestei seu ponto de vista. Eu não tomava como cabível tal argumentação naquele contexto e lugar onde, a princípio, deveria prevalecer a aceitação das diferenças e o entendimento do caráter complexo da sexualidade. Mas o que vi foi um engessamento a partir de noções binárias do tipo macho/fêmea, homem/mulher, cis/trans. A premissa soava tão ofensiva quanto dizer que bissexuais são pessoas mal resolvidas.

Essa compreensão só foi possível quando eu me despi do status de homem gay cisgênero e me coloquei num lugar que não é o meu, mas que me afeta.

A sensibilidade conveniente do macho alfa e reflexões consequentes

Certa vez, um colega relatou-me que um cliente da mesma academia onde ele pratica atividade física passou a encará-lo com ar ameaçador apenas porque percebeu que este meu amigo o observava enquanto ambos faziam exercícios em aparelhos próximos. Disse ainda que o cliente, incomodado, passou a enfrentá-lo com expressões rudes que insinuavam disposição à briga. Porém, não houve ofensa verbal, ameaça expressa ou violência física. Tudo se restringiu ao plano das insinuações veladas. Precavido, meu amigo comunicou suas suspeitas ao proprietário da academia, que conversou com ambos e apaziguou os ânimos, solicitando que eles continuassem a frequentar o local com respeito mútuo.

Dessa história, um fato me fez entrar em ebulição. Segundo o proprietário do estabelecimento, o rapaz justificou sua postura rude porque se sentiu desrespeitado com o espiar do meu amigo e sem privacidade na academia com a presença dele. Então pensei: alegar desrespeito e perda de privacidade apenas por conta de uma única olhada que não mais se repetiu? Por analogia, mulheres também podem alegar o mesmo, sobretudo porque são vítimas recorrentes não apenas de miradas insistentes, mas de cantadas grosseiras. Foi exatamente o que o meu colega falou ao proprietário da academia: do mesmo modo que homens heterossexuais admiram mulheres, assim também fazem os homossexuais com pessoas que lhes despertam interesse. Mas isso certamente não passou pela cabeça daquele macho tão sensível.

Neste caso, há duas situações opostas com relação à consciência da alteridade. Por um lado, eu entendo os argumentos e a indignação do meu amigo quando ele alega que a justificativa de perda de privacidade é tão válida quanto uma nota de três reais. Também me ponho no lugar de mulheres diuturnamente vítimas dos mesmos atos que agora os machistas, seus algozes costumeiros, alegam ser as razões de se sentirem violados. Por outro lado, eu não consigo me posicionar no lugar do rapaz incomodado com um único olhar de um homem e que transforma isso em uma ofensa desmedida. Eu ainda não consegui desenvolver essa capacidade de aceitar as sensibilidades por conveniência. Eu poderia e deveria compreender que ele também é vítima de uma cultura machista e de um sistema de valores que reproduzimos inconscientemente. Mas, nessa hora, meu sangue no olho fala alto e o exercício a que me refiro vai por água abaixo. O problema é que eu não me sinto culpado por isso.

Os “brancos oprimidos” e empatia impossível

No dia 10 de abril passado, o apresentador Silvio Santos, todo poderoso da SBT, foi alvo de protestos nas redes sociais após afirmar que o jovem ator João Guilherme Ávila parecia “uma bichinha” na novela Cúmplices de um Resgate. A polêmica rendeu a ameaça de processo judicial pelo Grupo Gay da Bahia, que por sua vez rendeu mais polêmica.

Em um grupo de ativismo LGBT no Facebook, acompanhei uma discussão em que pessoas alegavam que o GGB queria holofotes. Um deles fez uso de uma frase recorrente: “tudo para vocês agora é homofobia”. Ato contínuo, houve quem perguntasse se era homofobia chamar alguém de “bichinha” em tom de brincadeira. Mais uma vez, minha empatia não funcionou e o sangue fervilhou. Contestei aqueles argumentos alegando que eu fui vítima desse “gracejo inocente” durante toda minha vida escolar e não estava – como ainda não estou – a fim de dar espaço para naturalizar a brincadeira e internalizar o preconceito a ponto de não enxergá-lo como tal. “Só conhece a dor quem a sente na pele”, afirmei.

Desta vez, minha intenção era fazer com que eles se colocassem no meu lugar. Aleguei que, pela lógica da brincadeira, negros continuariam sendo chamados de macacos sem qualquer constrangimento. Talvez pela lógica semelhante de suposta ausência de danos, ainda seria consagrado como absoluto o princípio de que “em briga de marido e mulher, ninguém mete a colher”. Felizmente, há leis a frear estes e outros absurdos. Mas a homofobia, não. Essa ainda corre solta e isso era o que aquelas pessoas não conseguiam compreender.

Meus esforços foram inúteis e o show de horrores só piorava. Alegaram que nós, brancos, vivemos recebendo apelidos (mesmo?) e levamos na esportiva, ao que indaguei: “nós, brancos, somos tão historicamente oprimidos, né?” Nessa hora, o caldo de ignorância engrossou e houve quem defendesse que “isso foi no passado” e que “temos que focar no presente e não ficar remoendo o que lamentavelmente aconteceu”. Passado? Havia no grupo quem achasse que o racismo foi varrido da nossa cultura? Passado estava eu! Um estado de choque se abateu sobre mim e, naquele momento, percebi que a impossibilidade de empatia, diálogo e acordo havia atingido níveis muito altos. Da minha parte e da parte deles. Desisti.

A inexorável recusa em entender as razões do ódio

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Charge de Simanca (Fonte: A Tarde)

A votação do impeachment de Dilma Rousseff na Câmara dos Deputados, no dia 23 de abril, rendeu episódios bizarros de repercussão internacional. Um deles ganhou contornos de ultraje à jovem democracia brasileira: a homenagem de Jair Bolsonaro ao coronel Carlos Alberto Brilhante Ustra, ex-chefe do DOI-CODI, responsável por torturas e assassinatos durante a ditadura militar. Outro fato que ganhou notoriedade midiática foi o cuspe “desferido” por Jean Wyllys contra Bolsonaro, por ter sido por este insistentemente ofendido em razão do seu voto contrário ao impeachment.

Neste embate, eu tenho um lado e não é nem jamais será do fascista cuspido. Jair Bolsonaro é um notório e contumaz detrator dos direitos humanos. É machista, racista, misógino, homofóbico e transfóbico. Sabemos que, em grande medida, aquilo é uma personagem construída sobre o terreno pantanoso da polêmica que garante a audiência que ele tanto deseja para continuar acumulando votos. Mas é também sua essência.

Por assim pensar, causou-me revolta quando percebi que, em redes sociais, a indignação por conta do cuspe ganhava corpo, enquanto que muitos atribuíam valor menor ou nulo ao discurso repulsivo e criminoso de Bolsonaro e sua insistente provocação contra Jean. Pior que isso foi constatar que havia um completo desconhecimento de outro fato que ocorreu na sequência: o cuspe de Eduardo Bolsonaro, o fascista júnior, em direção a Jean. Se você não tomou conhecimento do segundo cuspe, não se espante. Isso é efeito da indignação seletiva que faz com que duas situações idênticas tenham tratamentos desproporcionais.

Houve quem considerasse a fala de Bolsonaro e o gesto de Jean ações calculadas para surtir efeitos e, em certa medida, eu concordo com essa tese, pois ambos sabem como a polêmica pode operar em seu favor. Porém, de um lado, temos a afronta aos direitos humanos; do outro, sua defesa. Ao enxergar ambas como estratégias, eu demonstro a preservação do meu senso crítico mesmo na condição de um ativista apaixonado pelo que faz e, mais uma vez, exerço o necessário distanciamento. Mas é exatamente este mesmo senso crítico que me faz escolher o lado da defesa. E é a paixão pela luta social que faz eu me sentir vingado com aquele cuspe. Neste caso, qualquer tentativa minha de empatia com Bolsonaro, se houvesse, seria motivo para internação imediata e acompanhamento psiquiátrico.

Na condição de gay e ativista do movimento LGBT, eu assumo abertamente o cuspe como meu também e defendo que, em circunstâncias como essa e muitas outras, vale a máxima de Malcom X: “não confunda a reação do oprimido com a violência do opressor”. Ainda ontem, comentando sobre uma postagem provocativa que fiz contra Ana Paula Valadão e seu discurso preconceituoso contra ótima campanha publicitária da C&A, eu dizia que não estou disposto a aceitar quem destila ódio, como também não sou obrigado a isso. Para pessoas como Valadão, Bolsonaro, Eduardo Cunha, Marco Feliciano, Silas Malafaia, sargento Isidório e uma lista interminável de intolerantes, eu dedico a minha revolta.

Enfim, a experiência da alteridade é muito válida, um exercício que busco seguir e que pode render ótimos frutos. Mas reconheço que ainda não atingi o Nirvana ou um grau de sublimação que me coloque no patamar da santidade.

* Gésner Braga é gay, ativista social, jornalista e mantem o site Clipping LGBT

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1 thought on “O olhar do outro

  1. Hoje em dia, exercer a sexualidade, é como ter em mãos um check-list, do que “delimita”ser hetero, bissexual ou gay! Já ouvi de um taxista que tem cunhado gay, que admira o meu jeito mais amistoso de conversar, mas disse que não curte corpo de homem! Na época eu transava fluidamente com pai dele e acabamos nos beijando, apenas! Noutra ocasião, ai sem nenhum “vinculo parental” transamos até demorado! Nas corridas de taxi, seguintes, um clima mais amoroso surgiu, sendo cumprimentado ao entrar no taxi, com selinho e indo na frente! Até disse sensação gostosa! Mas transar com Bissexual, nem sempre a relação se torna (evolui) para namoro; mas vale a máxima: “Foi bom enquanto durou”!

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