28 de março de 2024

Fernando Dantas Vieira relata ao iGay como descobriu ainda na infância que não se encaixava nos padrão masculino. Hoje, ele também não se vê como mulher, mas se vê no caminho de descobrir sua identidade. Veja o depoimento

Publicado pelo portal iGay, em 31 de outubro de 2014

fernandodantasvieiraA rosa plástica que enfeitava a mesa de centro da sala de minha avó estava presa atrás de minha orelha, o lençol de cama azul estrelado cobria minha cabeça e corpo como um manto divino. Sentia-me como uma Deusa. Andava de um canto ao outro do quarto ao som de alguma melodia mental que já não me lembro; eu tinha seis anos. Era mágico, até que um tio me interrompe e diz: “Fernando! Está parecendo uma drag-queen”. Eu rapidamente retirei a flor da orelha. “Não, tio. Eu estava brincando de super-herói.”

Eu não sabia exatamente o que era uma drag-queen, sabia que eram todos “gays” e que eles não eram bem vistos. Aquelas palavras ecoaram em mim durante dias, talvez anos: “Parece uma drag-queen”. Aquele momento não foi apenas a interrupção de minha brincadeira infantil, foi também uma denúncia, um tanto distorcida, sobre mim mesmo, que dizia algo como: “Fernando, você não é como os outros meninos”.

Logo isso passou a fazer parte do meu cotidiano. Eu não era só aquele garoto de quem o pai tinha vergonha por não jogar futebol, ou que tinha trejeitos diferentes, brincava diferente, ou que andava diferente, eu era, acima de tudo, o que desejava diferente.

Já havia dentro de mim a convicção de ser gay, de gostar de homens. Isso ficava claro nas minhas voltas pela internet em salas de bate papo, ou quando ficava excitado aos 12 anos ao olhar para alguns primos, amigos, artistas. Não havia controle sobre isso. Eu não desejava mulheres, como sempre se esperou de mim. Eu desejava garotos. Eu amava a virilidade, o fato de serem espaçosos, a timidez… mas sabia que não podia expressar aquele desejo. Eu poderia, no máximo, ficar na masturbação.

Muito cedo, porém, descobri o sexo “nas sombras”. Descobri que alguns dos meus amigos, alguns desconhecidos, alguns terrenos baldios, alguns carros de madrugada, poderiam servir para conseguir o sexo sem afeto. O mundo da sexualidade me foi apresentado dessa forma: o meu desejo era bestial e o meu lugar eram os terrenos baldios.

Também nunca vivi o processo comum de me assumir. Chegar aos meus pais e dizer: “Sou gay”. Minha mãe é lésbica e meu irmão mais novo também é gay e já havia se assumido antes de mim; o meu problema sempre foi comigo mesmo. Quando pensava no meu jeito feminino, no meu desejo impronunciável, ou minhas práticas nos banheiros e terrenos baldios da vida, lembrava sempre, mergulhado na culpa, na minha avó. “Ela já teve a filha e um neto homossexuais, será que eu nunca darei um bisneto pra ela?” Aquilo era um imenso peso.

Minha sexualidade se revelou sem precisar das palavras. Nas crises de depressão que vivi por me apaixonar por amigos, nas tentativas de suicídio. Contei com a perspicácia de minha mãe, que já sabia. Sempre soube. Não precisei pronunciar nada. Mesmo assim, ainda era indizível pra mim.

Minhas depressões persistiram por muitos anos (e ainda persistem), foram ao todo três tentativas de suicídio. De colocar um fim na minha impossibilidade de pertencer ao mundo, de colocar um fim na imensa solidão de jamais poder expressar meu afetos.

Recentemente tenho me descoberto ainda mais. Não sou simplesmente um homem gay. A flor em meu cabelo e o manto de deusa que eu queria, ainda persistem no meu ser. Não me vejo como um homem. A categoria de homem não me cabe, eu a transbordo, assim como a de mulher também não.

Eu transbordo as amarras do gênero. Sou trans, sou não-binário, nem homem, nem mulher. É assim que me vejo. Bem, isso é muito recente. Ainda nesta semana vivi a terrível sensação de ter minha identidade de gênero classificada numa categoria patológica, como um transtorno de personalidade. É ainda uma identidade que não pronunciei para minha família. Apenas para alguns. Sou trans androssexual (que tem desejo sexual por homens). A transgeneridade não binária é um recomeço, é me assumir novamente, é recomeçar. É uma nova trajetória.

•••

O CLIPPING LGBT TAMBÉM ESTÁ NO FACEBOOK. CLIQUE AQUI, CONFIRA E CURTA NOSSA PÁGINA.

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *