19 de abril de 2024
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Margot Käßmann ocupou o mais alto posto do EKD (Claude Truong-Ngoc / Wikimedia Commons)

Clarissa Neher
Publicado pelo portal BBC Brasil, em 3 de setembro de 2017

Margot Käßmann ocupou o mais alto posto do EKD (Claude Truong-Ngoc / Wikimedia Commons)

Há exatamente 500 anos, Martinho Lutero provocava o terremoto que abalou as estruturas da Igreja Católica e provocou a cisão do cristianismo. Cinco séculos depois, a herdeira direta da Reforma Protestante mostra que mantém vivo o espírito de mudança que inspirou o jovem monge.

O fim do celibato, o perdão pela fé e a popularização da Bíblia fazem parte da doutrina luterana desde o rompimento com o Vaticano. Nas últimas décadas, porém, a Igreja Luterana da Alemanha (EKD) se abriu a temas atuais e aceitou reinvindicações que ainda são tabus em algumas esferas da sociedade.

A primeira grande mudança ocorreu no fim da década de 1940, com a abertura para a ordenação de mulheres. Em 2015, as mulheres eram 33% dos ordenados. Embora aceitasse pastoras, o caminho foi longo até a nomeação da primeira bispa, que ocorreu somente em 1992. Atualmente, a igreja promove uma campanha de equiparação de gênero em todos os níveis da instituição.

“A ordenação de mulheres é uma consequência da teologia do batismo de Lutero. Para ele, todo cristão batizado pode ser padre, bispo e até papa, então essa premissa é válida também para as mulheres”, afirma Margot Käßmann, que assumiu o mais alto posto da EKD entre 2009 e 2010 e atualmente é a embaixadora da reforma.

Além buscar a equiparação, em 2013, a EKD deu um passo importante para combater o preconceito contra homossexuais. Nesse ano, a instituição publicou novas diretrizes para o modelo familiar e passou a considerar uma família qualquer núcleo onde haja amor, deixando de lado o tradicional “pai e mãe casados com filhos” e aceitando parceiros do mesmo sexo.

Ao justificar a mudança, a EKD lembrou que padrões tradicionais eram contestados há anos e essa luta havia alcançado mudanças sociais e legais que reconheceram a diversidade familiar e a igualdade de direitos entre os membros de diferentes constelações familiares.

Diante desse reconhecimento, a igreja afirmou que também precisa se atualizar. A alteração das diretrizes ocorreu mesmo com a oposição das alas mais conservadoras dentro da EDK.

Igreja Luterana abre caminho para casamento gay (Getty Images)

Já no caso do casamento entre homossexuais, a aceitação religiosa veio bem antes da legal. Desde 2013, regionais da EKD começaram a aprovar e realizar o matrimônio homoafetivo. O Parlamento alemão, porém, só legalizou o casamento gay em junho deste ano.

A primeira a oferecer a cerimônia de casamento para casais do mesmo sexo foi a regional de Hessen-Nassau, que compreende a região de Frankfurt. A iniciativa foi até agora seguida por outras quatro das 20 regionais no país. Em algumas das que ainda não aprovaram a mudança, é oferecida, no entanto, uma benção para casais homossexuais.

A mudança nas diretrizes sobre a constituição familiar possibilitou ainda que a igreja pudesse aceitar também abertamente pastores homossexuais e seus parceiros.

Käßmann afirmou que a discussão sobre a homossexualidade ocupou a igreja durante anos e, no fim, após a análise da Epístola aos Romanos – considerado por Lutero o evangelho mais importante do Novo Testamento -, chegou-se à conclusão que casais do mesmo sexo, que possuem relações baseadas na confiança, fidelidade e responsabilidade, não devem ser excluídos da bênção de Deus.

“A igreja da Reforma precisa se transformar continuamente. Ela não é uma instituição imóvel, mas feita por pessoas e por isso pode aprender”, ressaltou Käßmann.

500 anos da Reforma

Martinho Lutero provocou a cisão do cristianismon (Creative Commons)

As transformações nas últimas décadas mostram que a instituição preserva o espírito de abertura ao questionamento de suas normas que impulsionou Lutero e a Reforma Protestante.

Durante toda sua caminhada religiosa, iniciada em 1505, Lutero se dedicou a buscar a resposta para a questão sobre como a clemência de Deus seria alcançada. Numa viagem a Roma, o monge foi confrontado com comércio de indulgências realizado pela Igreja Católica, que enfrentava problemas financeiros e prometia até o regaste do purgatório para mortos cujos parentes comprassem o perdão.

Ao encontrar na Bíblia uma resposta que contradizia esse comércio, o jovem monge tentou propor um debate sobre o tema. Lutero contestou a prática em 95 teses, que foram divulgadas em 31 de outubro de 1517. Originalmente escrita em latim, a publicação foi rapidamente traduzida para o alemão e distribuída em todo o território que atualmente faz parte da Alemanha, provocando uma revolução não somente dentro da igreja.

“A Reforma significou o fim do sistema medieval. Como a religião também agia na sociedade, política, Estado de direito, economia e cultura, essas áreas sofreram mudanças drásticas”, afirmou o historiador Armin Kohnle. “Em muitos campos, a Reforma significou um passo para a modernização da sociedade europeia”, ressaltou.

O professor da Universidade de Leipzig citou ainda como exemplo de impacto dessa contestação o aumento do nível educacional da população em locais onde a reforma ocorreu, com a criação de escolas e a modernização de universidades.

O teólogo Volker Leppin acrescenta que a reforma impulsionou ainda a reflexão sobre a tolerância ao criar uma Europa multiconfessional.

Na porta da igreja

Depois de 500 anos, ainda resta, porém, uma controvérsia sobre a Reforma. Alguns pesquisadores afirmam que as teses de Lutero não foram fixadas na porta da igreja de Todos os Santos em Wittenberg, como costuma ser contado.

Para Kohnle, não há dúvidas de que as teses foram pregadas na porta da igreja, mas não há mais como saber se realmente foi Lutero quem o fez.

Leppin afirma que o próprio Lutero noticiou que enviou primeiro as teses para o arcebispo de Mainz, em 31 de outubro de 1517. Dessa maneira, elas não teriam sido pregadas na porta da igreja no dia em que é celebrada a reforma. “O mais importante neste debate, porém, é o conteúdo das teses”, concluiu o teólogo.

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