28 de março de 2024
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(Pixabay)

Eu chorei muito para estar aqui. Eu senti muita dor e desprezo, mas aprendi a ser feliz para poder sobreviver ao ódio contra quem eu sou. E ainda tenho mais caminhos a desbravar

Por Jaqueline de Jesus
Publicado pelor portal AzMina, em 21 de junho de 2017

(Pixabay)

Apesar de alguns episódios tristes ou revoltantes de discriminação, menosprezo ou ridicularização de que fui alvo em minha vida (os quais, felizmente, têm sido raríssimos), a vivência de minha mulheridade trans é profundamente enriquecedora, empoderadora.

A minha experiência pessoal, conforme já expliquei em outros textos e falas, não pode ser tomada como referência para se pensar a vida de outras mulheres trans e negras: professora universitária de instituição federal, com pós-doutorado, produção intelectual razoavelmente reconhecida, apoiada pela família de origem, com bons amigos e tendo relacionamentos afetivos satisfatórios. Infelizmente, não é esse o padrão.

Eis que o fato, iluminador para alguns, é que não dá para falar, com seriedade, em uma “experiência” ou “comportamento” trans, pensando as vidas trans como se fossem iguais.

Como quaisquer outros seres humanos, mesmo sendo parte de um mesmo grupo social, agrupado mais em termos ideológicos e políticos do que identitários, somos pessoas diferentes e únicas.

Só o ser mulher trans não me coloca nas mesmas situações de outras mulheres trans, porque eu sou negra. Uma mulher trans branca não é tratada, a priori, da mesma forma que eu. Para quem não vivencia o racismo brasileiro, basta repetir o que comentei em outros artigos, que as discriminações que sofremos, por sermos mulheres, trans e negras, não apenas se somam, multiplicam-se em um nível de difícil descrição.

Eu sei que sou uma exceção, e essa compreensão só reforça como o Brasil é hediondamente racista, machista e transfóbico (só para apontar essas três dimensões). Lembro-lhe que esse país não é algo que está lá fora, nós fazemos parte dele, é a nossa cultura, nossa sociedade, e por isso devemos nos perguntar quantas vezes reproduzimos preconceitos sem perceber, sem intenção.

E transfobia não é só insultar, ameaçar, agredir ou matar – piores aspectos dessa forma de opressão. Desrespeito ao gênero com o qual nos identificamos é, igualmente, transfobia. As formas mais nefastas de exploração são afligidas sobre nós, pessoas trans, de forma corriqueira.

Indague-se: quantas vezes você se acomodou nos seus privilégios de identidade, quaisquer que sejam, e tratou mulheres trans de forma diferente da que trata outras mulheres cis (que não são trans)?

É comum que essa diferença de tratamento, por si só discriminatória, seja inferiorizadora ou depreciativa mesmo, como se mulheres trans fossem menos mulheres, ou mulheres não fossem. Tal pensamento-ação é mais comum do que a maioria das pessoas cis percebe ou reconhece.

O ponto nevrálgico desta reflexão é: como consigo ser feliz, neste país tão desrespeitoso e violento contra a minha identidade de gênero? Sempre ensino: as pessoas trans não estão infelizes com a identidade delas, mas, isso sim, com a transfobia contra essa identidade.

Sem gozar de privilégio algum dos cis, ser uma mulher trans me permite ter um ponto de vista sobre as coisas profundamente original, e um sentimento de mundo bem enriquecedor, em contraponto ao senso comum acerca das identidades, do gênero, e mesmo das sexualidades.

Por exemplo, como mulher heterossexual com identidade transgênera (o que por si só, nesta sociedade sexista e transfóbica, coloca-me como uma “heterodiscordante”), consigo lhe afirmar que há muitas possibilidades de vivenciar essa orientação sexual, mas que têm sido obnubiladas por um modelo único de heterossexualidade, “cisheteronormativo”, que haure uma única forma de ser heterossexual, restringindo, inclusive, os corpos e desejos de homens e mulheres cis.

Eu sou uma pessoa feliz. Não por causa da minha identidade de gênero, tampouco em decorrência unicamente dela. Um conjunto de fatores internos e externos me favorece a vivenciar com maior frequência o sentimento da felicidade, mesmo que porventura eu tenha meus momentos de tristeza.

Eu admiro aquela criança que eu fui e me orgulho desta mulher que me tornei. Uma é um reflexo da outra. A criança foi incrivelmente forte e sobreviveu a um mundo de “nãos” sobre o seu corpo, o seu gênero, até se encontrar em mim hoje

Eu tenho consciência de que o meu riso é resistência in natura.

Ser uma mulher trans feliz afronta a transfobia. Faço isso de forma espontânea, porque sei que não sou inferior a qualquer outra mulher. A minha identidade de gênero não me torna uma mulher “menor”, como pensam os transfóbicos, ela só me dá algumas características, lugares de fala e condições de vida diversas das de outras mulheres, como também ocorre com mulheres negras. Fazemos coro ao fato de que não cabe se falar em um modelo único de mulher, mesmo entre as mulheres cis, que não são iguais nem pensam e sentem a sua realidade da mesma forma, só por se identificarem com o gênero que lhes foi atribuído socialmente.

Eu chorei muito para estar aqui. Eu senti muita dor e desprezo. Isso não me torna melhor do que ninguém, porém coroa uma caminhada cheia de ideias e ações, mas principalmente de afeto. Eu aprendi a ser feliz para poder sobreviver ao ódio contra quem eu sou. Ainda tenho mais caminhos a desbravar, nesta conquista de mim mesma, e de desbravamento do mundo que me cerca.

Eu amo ser uma mulher trans!

Jaqueline de Jesus é professora de Psicologia do Instituto Federal do Rio de Janeiro. Coordenou o Curso de Extensão “Feministas nas Trincheiras da Resistências”. Doutora em Psicologia Social e do Trabalho pela Universidade de Brasília, com pós-doutorado pela Escola Superior de Ciências Sociais da Fundação Getúlio Vargas, Rio de Janeiro. É autora e organizadora de livros como “Transfeminismo: Teorias e Práticas”, entre dezenas de outras publicações.

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